¿A expansão continua? 

Traplev, repreZentação, 2016/17, impresion sobre adhesivo colado sobre placa ps, 60cmx64cm cada una (Foto Pedro Vitor Brandão)

“A imaginação institui a instituição”. Independentemente do tempo que passou entre a reflexão de Cornelius Castoriadis (1922-1997), da qual resultou esta frase, e as diferenças cada vez maiores entre o contexto pós-Maio de 68 que foi o dele, e o mundo pós-Trump que é hoje o nosso, esta possui uma espécie de força motriz que nos dá a capacidade de transformar o seu passado reminiscente num presente ativo e político. Isso fica especialmente evidente se falarmos do Brasil, onde vários campos da sociedade, em especial a cultura, que é o assunto que aqui nos importa, vivem uma crise democrática, alicerçada no protagonismo cada vez maior dos poderes económicos privados de princípio especulativo. A ideia que defendemos é que, se a “imaginação instituinte” de que fala Castoriadis é contemporaneamente necessária, só estaremos garantindo instituições democráticas para o futuro, isto é, lugares públicos onde poderemos exercer as nossas mais diversas subjetividades, gêneros e presenças, se atentarmos para os atuais impasses das políticas económicas e das políticas culturais. O assunto é extenso, tem diferentes camadas de entendimento, e a ideia não é esgotar aqui nenhum dos argumentos, mas antes abrir um debate, sabendo que um dos aspetos “otimistas” da reflexão de Castoriadis é a ideia do imaginário como força política que se antecipa à materialidade das instituições e às suas formas legislativas, e que tal como um músculo principal com grande capacidade instituinte, tem poder de questionar a fixidez e o “status-quo”. E é com este mesmo espírito que Documenta 14 deste ano, entre Kassel e Atenas, opta por trabalhar exclusivamente com instituições públicas: se o que está em causa é a participação e a democracia numa Europa (e num mundo) dividida, o projeto da Documenta deve ser entendido como um serviço público.

Imaginar as instituições é, portanto, um aspeto fundador da nossa condição contemporânea e pós-moderna, definidor da nossa participação cívica no mundo (veja-se a importância da “crítica institucional” para a redefinição da função dos museus nas décadas de 60, 70 e inicio dos 80), e por isso mesmo o alvo das estratégias bem conhecidas (porque largamente praticadas) pelos governos autoritários: sucateando as instituições públicas (através do desinvestimento financeiro e simbólico na cultura e na educação) desmonta-se a nossa capacidade de imaginar.

Uma das reflexões-chave passa por entender que tipo de instituições queremos e podemos, sem que isso venha a ser definidor de consensos. No caso das instituições culturais (inclua-se aqui uma ampla variedade de formas de organização pública e privada: museus, galerias, coletivos, escolas de arte, feiras, etc.), é a diferença entre forma institucional e forma instituinte que, julgo, vale trazer ao debate. Enquanto no primeiro caso a sociedade e os seus instrumentos políticos e econômicos operam para produzir uma realidade “harmoniosa”, sendo que as instituições convergem e expressam a vida de modo pacífico, no segundo caso, as instituições devem ser capazes de se abrir às dinâmicas conflitivas da sociedade civil e seus mais diversos capitais simbólicos. Dando um exemplo concreto, em 2011 o Instituto Oi Futuro/ Rio de Janeiro, pertencente à empresa de comunicações homônima, operadora em toda a América do Sul, descartou uma exposição previamente confirmada, da fotógrafa norte-americana Nan Goldin, por alegado conflito das imagens de conteúdo sexual com o seu projeto educativo. Na sequencia, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro recebeu a mostra vendo nela uma oportunidade não só de expor o trabalho da artista, como também de promover um fórum público de discussão multidisciplinar sobre o cariz sexual das imagens. Entre forma “institucional” e forma “instituinte”, aquilo que as distingue é, em grande medida, a disputa pelo direito do “museu” (em sentido ampliado) em exercer cidadania, algo que surge ameaçado no atual contexto.

No caso do Brasil, a instabilidade política e económica que se tem vivido, especialmente nos últimos anos, favorece as “formas institucionais”, em detrimento das “formas instituintes”. Ou seja, o Estado cada vez mais demissionário na sua função de assegurar os princípios constitucionais de acesso à cultura, passa para os poderes privados a manutenção deste acesso. Disto é recorrente uma nova configuração dos cargos e funções nas instituições culturais. Lugares que tradicionalmente eram ocupados por curadores, artistas ou “intelectuais” passam a ter à frente gestores, colecionadores privados ou “art advisers”, e o “business plan” passa a prevalecer relativamente ao projeto artístico. Não se confunda esta última afirmação com posições radicais que defendem o descarte da presença de profissionais de gestão, ou até mesmo a idílica “autonomia” total do artístico nas instituições, pois não se trata disso – a autonomia é uma miragem e não existem instituições “independentes”. Aquilo que me refiro é à disputa por quem fala no número do “ventríloquo”, à falta de estabilidade política mínima para que as instituições culturais possam manter um diálogo democrático com os poderes económicos privados. E isso, não raras as vezes, resvala em formas de subserviência.

Recentemente pude ler Museums: Managers of Consciousness (1986), de Hans Haacke, texto sensível e premonitório, onde o artista alemão analisa a estrutura dos conselhos dos museus públicos e privados dos E.U.A. – “organizações sociais” que seguem “modelos industriais” -, vendo à época mudanças profundas com a adesão aos mercados neoliberais. O texto de Haacke tem o mérito de anunciar o aparecimento de formas avançadas do capitalismo na cultura, como também o desaparecimento galopante da função cívica dos museus. Sem que o refira explicitamente, o artista reforça a importância dos anos 80 para aquilo que virá a ser o imaginário atual: a consolidação dos modelos corporativos e dos consensos neoliberais. Fabricando vontades e consumidores para as mesmas, as empresas passam a operar diretamente nas narrativas que devem ou não devem compor a sociedade e as suas formas de expressão cultural, e as lógicas culturais passam a ser regidas pelo consumo e entretenimento.

Transpondo para o caso do Brasil, também os anos 80 são “particulares” (uma “caixa preta” segundo o artista Ricardo Basbaum), para entender os avanços do mercado e os consensos sobre a cultura e sobre as artes visuais. Um deles é a leitura que se faz da arte dos anos 80 à luz do consenso do “retorno à pintura” por um lado, e do cunho exótico e tropical da produção brasileira, por outro. As razões desta leitura não estão somente com aqueles que a seguem, mas creio que se devem ao vazio crítico de curadores, pesquisadores e principalmente das instituições brasileiras sobre esses anos. Ao invés de produzir realidades “instituintes”, dinâmicas e dissensos, alimentou-se a “ideologia do consenso”, o mercado livre e especulativo das ideias, submetido à lei da oferta e da procura. Só isso explica, por exemplo, que apenas em 2008 o artista Paulo Brusky, conhecido por seu trabalho em performance e arte-postal, tenha feito a sua primeira participação numa galeria comercial. Daí em diante, a releitura crítica da obra de Bruscky tem possibilitado não só a inclusão da sua poética marginalizada, mas principalmente a reconsideração do cânone historiográfico à luz daquele que o mesmo cânone havia esquecido. Resgates deste tipo, sustentados plenamente por instituições e análise crítica, são muito diferentes da busca por “artistas esquecidos” enquanto novos nichos de mercado que podem vir a mobilizar novos lucros a serem obtidos. Neste sentido os museus, e não o mercado, ainda ocupam um papel importante na legitimação e na validação dos artistas.

Também nos anos 80 que surge o grande divisor de águas para as instituições culturais públicas e privadas no Brasil: leis de incentivo fiscal, a Lei Sarney (de 1986) e depois a Lei Rouanet (de 1991). Refiro-me a estas como um “campo-de-forças”, pois aí jogou-se (e ainda se joga) um duplo movimento que tanto profissionalizou as instituições e diversificou a cadeia produtiva das artes, como privatizou e moldou a cultura às empresas, que se tornaram os efetivos “players” do acontecimento.

Dentre os pontos críticos das leis de incentivo no Brasil, e que podem servir de comparação com outros casos na América Latina, dois me parecem importantes destacar. Em primeiro lugar a financeirização da arte e das instituições, ou seja, a relação consolidada de artistas, museus, feiras, curadores, galerias, bienais, etc., por via dos atuais modelos de incentivo fiscal, com um sistema econômico formado pelo capitalismo avançado, aquele que determina de forma estratégica a expansão da riqueza e do avanço tecnológico (grandes empresas, bancos e instituições financeiras, etc.). O ponto crítico, a meu ver, está no fraco poder regulatório do Estado brasileiro, na sua incapacidade em intermediar as relações entre as instituições culturais e os grupos empresariais, o que gera trocas diretas e autônomas entre estes dois. As consequências são várias, mas uma é particularmente visível: a crescente presença e participação de modelos empresariais nos conselhos e na governança das instituições culturais, e a filosofia das instituições que passa a ser norteada por um pacote de metas e contrapartidas semelhante ao de um departamento de marketing.

O segundo efeito negativo para o qual as atuais leis de incentivo fiscal contribuíram e contribuem é a acumulação de riqueza. A afirmação pode soar estranha já que as mesmas leis também diversificaram o esquema de produção das artes, contudo é amplamente sabido que o dinheiro público no Brasil também incentiva coleções de arte privadas, feiras de arte, ou mesmo galerias comerciais, e o surrealismo, que por aqui nunca vingou, começa a proliferar em jogos linguísticos que driblam feiras de arte em “festivais”, ou galerias em “institutos” e “associações culturais sem fins lucrativos”, modos de continuar a garantir o acesso às leis de incentivo à cultura.

Como se referiu logo no início, o debate é amplo e complexo, tem diferentes interlocutores e aspetos a serem tidos em conta, mas é necessário, uma vez que o uso de dinheiro público tem de engendrar formas amplas de participação social, especialmente num país de profundas assimetrias como o Brasil, e que tem as suas instituições públicas debilitadas. As mais recentes instruções normativas da lei não alteram o ponto central que é: a necessidade de o Estado organizar critérios públicos e maior controle social na distribuição dos recursos, que reduza a longo prazo, o percentual de dinheiro público envolvido no montante da Rouanet, que já chegou a cerca de 95%, e que tem contribuindo para acentuar as assimetrias nacionais privilegiando em 80% a região Sudeste.

Desta forma, se é importante que colecionadores privados disponham as suas coleções nos museus para usufruto do público – o patrimônio artístico brasileiro é disperso e só assim se poderá ter acesso a núcleos expressivos que ajudem a entender a história da arte – também deverá ser legítimo querer saber sobre os destinos dessas coleções, volvidas décadas de conservação, estudo e valorização comercial, financiadas por leis de incentivo fiscal e recursos públicos. Se da mesma forma, também não nos diz respeito se um colecionador privado trabalhe com art advisers ligados a grandes leiloeiras internacionais, se porventura o seu projeto adquire um fim público, não tenho dúvida que a governança deva ser representativa e aberta, de forma a evitar modelos de crescimento que comprometem o futuro. Sobre isto veja-se a reflexão que Beatrix Ruf, diretora do Stedelijk Museum, Amesterdão, promoveu recentemente no Verbier Art Summit 2017, na Suíça, intitulada precisamente “Size Matters!” (“O tamanho importa!”).

A vida das instituições culturais nos últimos anos tem sido de crise e renovação constantes e sabemos que esse quadro permanecerá por mais tempo, e no caso brasileiro, as leis de incentivo necessitam ir a par do aprofundamento da democracia, e não o contrário. É precisamente neste contexto que importa pensar a capacidade instituinte das instituições e como conseguiremos juntos imaginá-las daqui para diante, lembrando a reflexão de Castoriadis. A equação não é simples sem dúvida, mas talvez seja a partir de um duplo movimento que abre e resguarda. Abrindo as instituições a diferentes espaços, níveis e mecanismos de participação, alguns deles conflitivos. Assim se pode realizar um processo coletivo a ser feito no contexto dos antagonismos e das crises atuais, e em diálogo com os poderes econômicos privados. E resguardando as instituições, ou seja, criando as condições para que elas possam operar, independentemente das flutuações dos mercados, das megalomanias de colecionadores privados, ou dos interesses políticos. Parafraseando Hans Haacke: “Nunca foi fácil para os museus preservar ou recuperar um grau de condução e integridade intelectual. É preciso ponderação, inteligência, determinação e alguma sorte. Mas uma sociedade democrática não exige nada menos que isso”.

 

Marta Mestre